sexta-feira, 6 de abril de 2007

UMA HISTÓRIA DE SERVIDÃO

UMA NAÇÃO SUJEITA DURANTE SÉCULOS ao terror físico e psicológico exercido pelos czares, os boiardos, a igreja ou o partido único dificilmente se libertará das tutelas que a oprimiram e dos hábitos que a servidão e a submissão nela inculcaram. Parece ser esta a única conclusão a retirar de quinhentos anos de história da velha Rússia, desde o sinistro reinado de Ivan o Terrível, entre 1533 e 1584, passando pela abdicação do czar Nicolau II, em Março de 1917, pela vitória da revolução bolchevique, em Outubro de 1917, pela «entronização» de José Estaline, em 1924, até à morte do czar vermelho, em 1953.

É pelo menos esta a tese que defende o ex-diplomata russo Vladimir Fédorovski, num interessante ensaio histórico intitulado Le Roman du Kremlin, publicado em 2004. A partir do Kremlin - a fortaleza e o conjunto de igrejas e palácios que albergam a sede do poder, em Moscovo - Fédorovski percorre a história da Rússia, desde Ivan o Terrível até à actualidade, explicando como o poder político foi exercido - quer durante a tirania czarista quer durante a ditadura do proletariado - sobretudo graças à solidez da parceria sempre renovada entre os seus sucessivos detentores e uma temível polícia secreta.

A essência do poder, na Rússia, parece estar contida no compromisso assumido pelo ainda jovem czar Nicolau II, durante um discurso proferido perante a sua corte, no Kremlin: «Estou satisfeito por ver aqui os representantes de todas as classes, que vieram testemunhar os seus sentimentos de súbditos obedientes e submissos. Eu acredito nesses sentimentos, que sempre animaram o povo russo. E quero que saibam que vou manter o poder absoluto, com tanta firmeza como meu pai». Esta era uma claríssima advertência dirigida a todos quantos ainda alimentavam ilusões liberais ou reformistas. O novo czar correspondia, assim, aos alertas feitos pela sua temível polícia secreta, a Okhrana.

Foi crucial o papel desempenhado pela polícia política e pelos seus espiões, quer dentro quer fora das fronteiras da Rússia e tanto durante o regime czarista como durante o regime comunista. Esta é a faceta mais interessante do livro, ao explicar a evolução da «megapolícia secreta» russa. Desde a jurisdição de excepção - a opritchnina - instituída pelo crudelíssimo e paranóico Ivan o Terrível, passando pela Okhrana, dos Romanov, e pelo KGB, de Estaline, até ao actual FSB, cujos poderes foram bastante reforçados por Vladimir Putin (antigo coronel do KGB). Por isso, há quem tema «um KGB em vias de reconstituição» e alerte para um «processo de sovietização e restauração» da Rússia.

Impressiona esta atracção pelo mal. E o fascínio que os tiranos exercem. Estaline é um modelo. Tão cruel como Ivan o Terrível, o czar vermelho estudou com minúcia os métodos de tortura que o próprio Ivan praticava. Tão tímido e tão asceta como Salazar, vivia num «modesto apartamento de três divisões» improvisado no gigantesco Kremlin. Nada pior do que uma nação humilhada para desejar o regresso dos seus fantasmas.
«DN-6ª» de 6 Abr 07

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