domingo, 31 de julho de 2011

SUPER-ÁLVARO E AS DOSES DE CAVAL(L)O

Ficámos a saber, através de jornais, que o actual ministro das Finanças, Vítor Gaspar, é um adepto da «desinflação competitiva» e um defensor da «austeridade orçamental», e que o economista que mais admira é Milton Friedman, precursor da «escola de Chicago» e mentor dos Chicago boys, que aproveitaram o Chile como laboratório, durante a ditadura militar de Pinochet, para aplicarem o seu modelo económico neoliberal, ou ultraliberal (tanto faz).

Mas não ficámos a saber, através de jornais, que o actual super-ministro da Economia, Emprego, Obras Públicas, Transportes e Comunicações (ufa!), Álvaro Santos Pereira, é adepto de Domingo Felipe Cavallo, economista e político argentino que cometeu a proeza de conseguir ser, sucessivamente, presidente do Banco Central da Argentina durante a sangrenta ditadura dos generais («mandato» de Jorge Videla), depois ministro da Economia do Presidente peronista Carlos Menem (perdão aos generais da ditadura, venda ilegal de armas, «Plano Cavallo» com efeitos desastrosos para o país), e, finalmente, ministro da Economia do Presidente radical de centro-esquerda Fernando de la Rua (revoltas populares contra as medidas de Cavallo, que o levaram à demissão, à declaração do estado de sítio e à renúncia do Presidente).

Durante as décadas de 1980 e 1990, a Argentina foi a menina dos olhos do FMI, que considerava o governo de Buenos Aires o seu «melhor aluno», e Domingo Cavallo um discípulo dilecto do Consenso de Washington (mais ainda que os generais neoliberais da ditadura militar). A aplicação da receita («Plano Cavallo») foi brutal: despedimentos em massa; privatização a toque de caixa dos serviços de utilidade pública, designadamente, correios, gás, electricidade, água, telefones e companhias petrolíferas (40 mil milhões de dólares encaixados pelo Estado evaporar-se-iam na paisagem); (neo)liberalização intensiva da economia e do comércio externo; restrições brutais aos levantamentos bancários e congelamento de fundos (o famoso corralito), medida só decretada depois de os especuladores nacionais e internacionais terem conseguido colocar no estrangeiro cerca de 15 mil milhões de dólares; subida das taxas de juro; adopção do sistema de paridade fixa entre o dólar e o peso (que deu cabo das exportações); lei do défice zero (decretada ao abrigo de poderes especiais); diminuição em 13 % dos salários da função pública e das pensões de aposentação; cortes brutais nas despesas públicas.

O resultado destas «doses» de Cavallo foi desastroso. Desde a ditadura militar (1976-1983) ate à declaração do estado de sítio, em 20 de Dezembro de 2001 (depois de milhares de argentinos invadirem as ruas em manifestações de protesto, com assaltos a supermercados e outros estabelecimentos comerciais, e a repressão a causar 31 mortos e mais de mil feridos): a dívida externa argentina disparou de 7,6 para 132 mil milhões de dólares; o desemprego subiu de 3 para 20 %; os argentinos em situação de pobreza extrema passaram de 200 mil para cinco milhões; os que viviam no limiar da pobreza passaram de um milhão para 14 milhões (isto, num total de 37 milhões de habitantes em 2001); e ascendia a 120 mil milhões de dólares o montante das fortunas colocadas no estrangeiro por políticos, patrões e sindicalistas corruptos.

Mas o que é extraordinário, depois deste balanço catastrófico, é que Domingo Cavallo tenha publicado, em 2010, de colaboração com Joaquín Cottani, um estudo intitulado «Making fiscal consolidation work in Greece, Portugal, and Spain: Some lessons from Argentina». Não, não está enganado, caro leitor: são lições dirigidas aos «países europeus em dificuldades e com um alto nível de endividamento», como sublinha o nosso super-Álvaro, no livro que publicou em Abril passado: «Portugal na hora da verdade – como vencer a crise nacional» (Gradiva). Parece que Domingo Cavallo é um «reputadíssimo» teórico e professor de Economia. Quanto a Joaquin Cottani, economista-chefe para a América Latina do Citi, foi subsecretário de Estado de Política Macroeconómica, subsecretário de Estado das Finanças e representante financeiro da Argentina em Washington, nos anos 1990, antes de ser contratado como economista-chefe para a América Latina do Lehman Brothers (também leu bem!) entre 1998 e 2003. Face a estes dois admiráveis currículos, só poderemos concluir que tudo recomenda Domingo Cavallo e Joaquín Cottani como especialistas aptos a dar conselhos aos países «à rasca» da União Europeia.

Se também assim pensou, melhor o fez o nosso ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, que cita abundantemente Cavallo e Cottani, para defender uma redução substancial das «contribuições fiscais e sociais afectas ao factor trabalho em contrapartida de um aumento dos impostos sobre o consumo e/ou da criação de um imposto verde (um imposto sobre as emissões de carbono)». Como diz Álvaro Santos Pereira, «Cavallo e Cottani defendem que seria possível reduzir entre 10 e 20 pontos percentuais as contribuições sociais, através do aumento da taxa geral do IVA em 2 ou 3%, ou através de uma harmonização das diversas taxas do IVA». Sucede que, por cá, «a taxa geral do IVA é de 23 %, mas a taxa reduzida é de 13 %, e a taxa super- reduzida é de 6 %». Ora, prossegue o nosso Super-Álvaro, «de acordo com Cavallo e Cottani, as perdas de receitas fiscais associadas à inexistência de uma taxa de IVA uniforme são muito substanciais». Em suma, para o nosso ministro da Economia faz todo o sentido «a substituição das taxas sobre o trabalho (como a taxa social única) pelo IVA (…), pois penaliza o consumo e estimula a poupança, que nos últimos anos tem baixado para níveis pouco salutares». Entre os 10 e os 20 pontos percentuais de que falam Cavallo e Cottani, Álvaro Santos Pereira opta por uma redução de 15 pontos percentuais da TSU, ou seja, das contribuições do patronato para a Segurança Social, acompanhada de uma correspondente subida do(s) IVA(s)! Não me pronuncio aqui sobre a bondade ou maldade desta medida preconizada pelo economista e ministro. Limito-me a oferecer o merecimento dos abundantes autos relativos a Cavallo e Cottani.

Confesso que foi um eufórico e laudatório ensaio de Henrique Raposo, publicado no EXPRESSO/Economia em 2 de Julho de 2011, com o melodioso título «Uma nova narrativa para Portugal», que me fez mergulhar na leitura do recém-publicado livro de Álvaro Santos Pereira que já referi. Raposo exprime uma grande exaltação patriótica pelo facto de ASP ser contra «a obsessão fontista que eleva o Estado a motor da economia, a obsessão de viciar a sociedade nas obras públicas» (estaria a pensar em Cavaco Silva?), e também pelo facto de ASP criticar «a narrativa dos direitos adquiridos, nomeadamente ao nível da lei laboral e da lei das rendas, dois factores de rigidez que dificultam a actividade económica» (de facto, a malta que trabalha é um enorme empecilho!). Mas Raposo não se dá conta de que, mais adiante, entra em manifesta contradição com esse desprezo pelos «direitos adquiridos» quando afirma que, «sem um Leviatã forte no campo da lei, não há economia que funcione». E também quando sustenta que é precisa «uma forte argamassa moral entre cidadãos e entre cidadãos e políticos». Acontece.

Henrique Raposo cita alguns clássicos, cujas lições terão sido aprendidas pelo nosso Super-Álvaro: «Adam Smith, Hume, Burke, John Adams, Lincoln, Tocqueville (i. e., o esquadrão de liberais à moda antiga)». Mas não reparou (ou não quis reparar) que ASP também aprendeu muito com Domingo Cavallo, que não é propriamente um «liberal à moda antiga», e cujas lições invoca para defender uma diminuição brutal da taxa social única. Além disso, Raposo não terá reparado que ASP também é adepto do «défice zero» (até 2016), tal como Cavallo era adepto do «défice zero», que decretou em Julho de 2001, ao abrigo de poderes especiais, numa Argentina à beira da bancarrota e da declaração do estado sítio, que ele contribuiu para provocar.

Verdade se diga que o nosso Super-Álvaro também é defensor - e ninguém fala disso - de «uma eventual reestruturação da nossa dívida externa». Diz mesmo que «o nosso nível de endividamento é de tal modo elevado e os nossos desequilíbrios externos são tão preocupantes, que é difícil equacionar um cenário em que tal não aconteça». E acrescenta, logo a seguir, que «esta reestruturação abrangeria não só um reescalonamento da dívida pública nacional (…), mas também uma diminuição do valor da dívida (os chamados haircuts da dívida)». Não sei se, como ministro, ASP manterá o que escreveu como economista. Mas sei que, agora que estão na moda as «narrativas», é bom que elas sejam tão rigorosas e completas quanto possível.
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Publicado no «EXPRESSO/Economia» de 30 de Julho de 2011

1 comentário:

AMCD disse...

Enfim, depois das medidas draconianas aguardam-nos medidas cavalares.

É de fugir!