CONTRA UMA EUROPA NEOLIBERAL
1.
AS RESPOSTAS às questões
de fundo sobre o futuro do euro e da própria União Europeia passam
inevitavelmente pela revisão dos tratados em vigor. Não é concebível
uma moeda única entre países que estão em constante guerra económica uns contra
os outros. Guerra da qual vão saindo vencedores os países mais desenvolvidos, do
centro da zona euro (Alemanha, Holanda, Áustria), e vão saindo derrotados os
países da periferia, mais vulneráveis e pejorativamente designados PIGS
(Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).
A crise do euro resulta, não apenas do
colete-de-forças que a moeda única constitui para os Estados membros da zona
euro mais dependentes e vulneráveis, mas também da financeirização desenfreada
das suas economias, do dumping fiscal e salarial entre os países membros, da
rivalidade constante e desgastante entre esses países para atrair capitais.
Tudo isto se reflecte seriamente no
bem-estar das populações, atingidas por cortes brutais na despesa pública (salários,
despesas sociais, etc.), por uma flexibilização cada vez maior das leis
laborais (com o inevitável aumento do desemprego), por reformas fiscais
injustas (que afectam sobretudo os rendimentos do trabalho e favorecem os
rendimentos do capital), pelo aumento das taxas de acesso a serviços públicos
essenciais (sobretudo da Saúde), pela privatização de empresas públicas estratégicas,
e por aí fora.
2. A
UE tem de libertar-se da
obsessão neoliberal que consiste em impor aos Estados membros a disciplina dos
mercados financeiros, designadamente através das agências de rating mais poderosas. Não faz qualquer sentido que a
indústria financeira desregulada – que provocou a crise e causou os aumentos
dramáticos das dívidas e dos défices – seja chamada a financiar os défices que
ela própria causou, fazendo exigências insuportáveis e impondo regras
draconianas aos países que sofrem as consequências da crise e se encontram em
estado de necessidade.
Tanto o Tratado de Maastricht (1992), que
instituiu a União Económica e Monetária, como o Tratado de Lisboa (2007), sobre
a governação da União Europeia, proíbem que os Estados da zona euro prestem
ajuda financeira a um país membro em crise, em virtude de uma cláusula de «não
salvamento» («no bail-out») que
impede a entreajuda entre países que têm estruturas económicas e sociais e
níveis de desenvolvimento muito diferentes.
Por outro lado, os Estados em dificuldades
também estão impedidos de recorrer ao Banco Central Europeu (BCE) para
financiar os seus défices, o que inevitavelmente os empurra para os braços dos
mercados financeiros, que, como disse, os submetem a critérios e exigências
demolidores para conceder empréstimos a juros proibitivos. Ora, esta crise veio
demonstrar, uma vez mais, que os mercados financeiros (designadamente as
agências de rating) não são nem
eficientes nem racionais, e é, por isso mesmo, aberrante confiar-lhes a tutela
das políticas económicas dos Estados membros.
3.
Por tudo isto, é imperioso
reclamar a revisão dos tratados em vigor. Para que na zona euro e na UE venham a
prevalecer a solidariedade financeira e não a competição desenfreada, a
cooperação e a entreajuda e não a guerra económica permanente entre Estados. E
também para que o estatuto do Banco Central Europeu seja modificado, responsabilizando-o
perante as instâncias democráticas nacionais e europeias, e estatuindo que a
missão do BCE e a sua política monetária e de crédito devem dar prioridade à
criação de emprego e ao desenvolvimento humano sustentável e duradouro.
Infelizmente, as reformas que têm vindo a
ser empreendidas são de mau augúrio: visam perpetuar a tutela dos interesses
financeiros sobre as políticas económicas dos Estados membros. O recente
Tratado para a Estabilidade, a Coordenação e a Governação institui a famosa
«regra de ouro» ou «regra do equilíbrio orçamental», que funciona como um
colete-de-forças e coloca os Estados membros sob a tutela da Comissão Europeia
e dos juízes do Tribunal de Justiça da UE (em detrimento do Parlamento Europeu).
Mais conhecido como Pacto Orçamental, vários economistas já consideram este
tratado como um «pacto para a austeridade perpétua», que é imperioso abolir.
4.
Ora, para combater a sério
esta crise tão grave, é mesmo necessário rever os tratados e criar condições
que permitam o lançamento de eurobonds,
a recapitalização do Banco Europeu de Investimentos, a criação de um fundo de
solidariedade para promover o crescimento (como sugeriu Stiglitz em artigo que
o «DN» publicou há um mês), além de
uma profunda reforma do sistema financeiro e de um controlo eficaz dos
movimentos de capitais, sem o que será muito difícil, se não impossível,
reduzir as desigualdades sociais.
Trata-se de transformar uma «Europa dos
bancos e dos banqueiros, dos empresários e dos patrões» (como dizia Bourdieu)
numa Europa dos cidadãos e da soberania popular, que reabilite os valores da
democracia e dos direitos humanos, do trabalho e da coesão social, do
conhecimento e da cultura. Trata-se de rejeitar o modelo autoritário e
tecnocrático que tem vindo a ser imposto pela ortodoxia neoliberal e reabilitar
o ideal pluralista e participado da política. Trata-se de provar que há
alternativas e que elas fazem todo o sentido.
«DN» de 7 Ago 12
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