quarta-feira, 8 de agosto de 2012

CONTRA UMA EUROPA NEOLIBERAL


1. AS RESPOSTAS às questões de fundo sobre o futuro do euro e da própria União Europeia passam inevitavelmente pela revisão dos tratados em vigor. Não é concebível uma moeda única entre países que estão em constante guerra económica uns contra os outros. Guerra da qual vão saindo vencedores os países mais desenvolvidos, do centro da zona euro (Alemanha, Holanda, Áustria), e vão saindo derrotados os países da periferia, mais vulneráveis e pejorativamente designados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).

A crise do euro resulta, não apenas do colete-de-forças que a moeda única constitui para os Estados membros da zona euro mais dependentes e vulneráveis, mas também da financeirização desenfreada das suas economias, do dumping  fiscal e salarial entre os países membros, da rivalidade constante e desgastante entre esses países para atrair capitais.
Tudo isto se reflecte seriamente no bem-estar das populações, atingidas por cortes brutais na despesa pública (salários, despesas sociais, etc.), por uma flexibilização cada vez maior das leis laborais (com o inevitável aumento do desemprego), por reformas fiscais injustas (que afectam sobretudo os rendimentos do trabalho e favorecem os rendimentos do capital), pelo aumento das taxas de acesso a serviços públicos essenciais (sobretudo da Saúde), pela privatização de empresas públicas estratégicas, e por aí fora.    

2. A UE tem de libertar-se da obsessão neoliberal que consiste em impor aos Estados membros a disciplina dos mercados financeiros, designadamente através das agências de rating  mais poderosas. Não faz qualquer sentido que a indústria financeira desregulada – que provocou a crise e causou os aumentos dramáticos das dívidas e dos défices – seja chamada a financiar os défices que ela própria causou, fazendo exigências insuportáveis e impondo regras draconianas aos países que sofrem as consequências da crise e se encontram em estado de necessidade.
Tanto o Tratado de Maastricht (1992), que instituiu a União Económica e Monetária, como o Tratado de Lisboa (2007), sobre a governação da União Europeia, proíbem que os Estados da zona euro prestem ajuda financeira a um país membro em crise, em virtude de uma cláusula de «não salvamento» («no bail-out») que impede a entreajuda entre países que têm estruturas económicas e sociais e níveis de desenvolvimento muito diferentes.
Por outro lado, os Estados em dificuldades também estão impedidos de recorrer ao Banco Central Europeu (BCE) para financiar os seus défices, o que inevitavelmente os empurra para os braços dos mercados financeiros, que, como disse, os submetem a critérios e exigências demolidores para conceder empréstimos a juros proibitivos. Ora, esta crise veio demonstrar, uma vez mais, que os mercados financeiros (designadamente as agências de rating) não são nem eficientes nem racionais, e é, por isso mesmo, aberrante confiar-lhes a tutela das políticas económicas dos Estados membros.

3. Por tudo isto, é imperioso reclamar a revisão dos tratados em vigor. Para que na zona euro e na UE venham a prevalecer a solidariedade financeira e não a competição desenfreada, a cooperação e a entreajuda e não a guerra económica permanente entre Estados. E também para que o estatuto do Banco Central Europeu seja modificado, responsabilizando-o perante as instâncias democráticas nacionais e europeias, e estatuindo que a missão do BCE e a sua política monetária e de crédito devem dar prioridade à criação de emprego e ao desenvolvimento humano sustentável e duradouro.
Infelizmente, as reformas que têm vindo a ser empreendidas são de mau augúrio: visam perpetuar a tutela dos interesses financeiros sobre as políticas económicas dos Estados membros. O recente Tratado para a Estabilidade, a Coordenação e a Governação institui a famosa «regra de ouro» ou «regra do equilíbrio orçamental», que funciona como um colete-de-forças e coloca os Estados membros sob a tutela da Comissão Europeia e dos juízes do Tribunal de Justiça da UE (em detrimento do Parlamento Europeu). Mais conhecido como Pacto Orçamental, vários economistas já consideram este tratado como um «pacto para a austeridade perpétua», que é imperioso abolir.
           
4. Ora, para combater a sério esta crise tão grave, é mesmo necessário rever os tratados e criar condições que permitam o lançamento de eurobonds, a recapitalização do Banco Europeu de Investimentos, a criação de um fundo de solidariedade para promover o crescimento (como sugeriu Stiglitz em artigo que o «DN» publicou há um mês), além de uma profunda reforma do sistema financeiro e de um controlo eficaz dos movimentos de capitais, sem o que será muito difícil, se não impossível, reduzir as desigualdades sociais.
Trata-se de transformar uma «Europa dos bancos e dos banqueiros, dos empresários e dos patrões» (como dizia Bourdieu) numa Europa dos cidadãos e da soberania popular, que reabilite os valores da democracia e dos direitos humanos, do trabalho e da coesão social, do conhecimento e da cultura. Trata-se de rejeitar o modelo autoritário e tecnocrático que tem vindo a ser imposto pela ortodoxia neoliberal e reabilitar o ideal pluralista e participado da política. Trata-se de provar que há alternativas e que elas fazem todo o sentido.

«DN» de 7 Ago 12

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